"Aquele que nos limitou a vida com seus termos, ao mesmo tempo, depondo diante dele nossa solicitude, proveu-nos de meios e recursos de conservá-la; também nos fez capazes de antecipar os perigos; para que não nos apanhassem desprevenidos, ministrou-nos precauções e remédios." (1.17.4, p.209)
Da mesma maneira que a prudência do homem prudente é protegido por esse meio, Deus utiliza a imprudência para dar cabo do tolo. O Senhor ordena que cuidemos de nossas vidas, e o próprio fato de não conhecermos o futuro é motivo para colocarmos isso em prática.
"Pois, donde acontece que o homem providente, enquanto cuida bem de si, se desvencilha até de males iminentes, o insipiente pereça levado por temeridade, senão que tanto a insipiência quanto a prudência são instrumentos da divina administração para um e outro desses dois aspectos? Essa é a causa por que Deus quis que não conhecêssemos o futuro, para que, sendo ele incerto, nos preveníssemos e não deixássemos de usar os remédios que ele nos dá contra os perigos, até que, ou os vençamos, ou sejamos deles vencidos." (1.17.4, p.210)
Outra objeção que se levanta diz respeito aos pecados, ordenados por Deus, e, portanto, justificáveis. Calvino lembra que é na Palavra de Deus que estão os mandamentos para o homem, e que ninguém comete o mau desejoso de fazer a vontade de Deus, mas por rebeldia e concupiscência.
"Se intentamos algo contra seu preceito, isso não é obediência; pelo contrário, é contumácia e transgressão. Mas, replicarão, a não ser que ele o quisesse, não o haveríamos de fazer. Concordo. Entretanto, porventura fazemos as coisas más com este propósito, ou, seja, que lhe prestemos obediência? Com efeito, de maneira alguma Deus não no-las ordena; antes, pelo contrário, a elas nos arremetemos, nem mesmo cogitando se ele o queira, mas de nosso desejo incontido, a fremir tão desenfreadamente, que de intento deliberado lutamos contra ele." (1.17.5, p.211)
Para explicar melhor, o reformador usa uma metáfora bastante sugestiva, e com isso desbanca de vez os opositores da doutrina da providência.
"E, indago eu, donde provém o mal cheiro em um cadáver que, pelo calor do sol, não só se fez putrefato, mas até já entrou em decomposição? Todos vêem que isso é provocado pelos raios do sol; contudo, ninguém por isso diz que eles cheiram mal. Daí, como no homem mau residem a matéria e a culpa do mal, que razão há para que se conclua que Deus contrai alguma mácula se, a seu arbítrio, ele faz uso de sua atuação?" (idem)
Vemos que a preocupação de Calvino com esta doutrina não é meramente algum tipo de exercício de imaginação, mas um desejo de expressa a verdade da Escritura e, como perceberemos nas próximas seções, a preocupação pastoral de trazer conforto aos fiéis. Que nós, estudantes de teologia, também tenhamos essas coisas em nossas mentes e em nossos estudos.