"Ora, se com falsa aparência de ignorância anelam ao louvor da modéstia, que de mais altivo se pode imaginar que opor à autoridade de Deus uma opiniãozinha insignificante: 'Meu parecer é outro', ou: 'Não me agrada abordar isso'? Se ao contrário se põem abertamente a maldizer, que proveito fruirão arremetendo-se contra o céu a cuspir?" (1.18.3, p.227)
Calvino enfrenta agora a objeção daqueles que dizem que ensinamos Deus ter duas vontade, como se fizesse as coisas mesmo sem o querer, ou desejasse o que não deseja. Para o reformador, essas pessoas simplesmente fazem confusão entre vontade e preceito. O reformador rejeita a idéia de vontade dúbia do Criador, mesmo que a nós pareça muitas vezes isso. Ele usa como exemplo maior do controle de Deus a crucificação de Jesus.
"E, com efeito, a não ser que Cristo houvesse sido crucificado porque Deus assim o quis, donde teríamos redenção? Contudo, nem por isso Deus se põe em conflito consigo mesmo, nem se muda sua vontade, nem o que quer finge não querer; todavia, embora nele sua vontade seja uma só e indivisa, a nós parece múltipla, já que, em razão da obtusidade de nossa mente, não aprendemos como, de maneira diversa, o mesmo não queira e queira que aconteça." (1.18.3, p.228)
Para reforçar sua idéia, Calvino apela novamente aos escritos de Agostinho, demonstrando que sua doutrina não idéia nova, mas algo que vem desde os tempos antigos. Trata-se de uma citação longa, mas que ilustra bem como conciliar essa a providência de Deus com o (mal) querer humano.
"Por vezes, com uma vontade boa, um homem quer algo que Deus não quer, como, por exemplo, se um bom filho quer que o pai viva, a quem Deus quer que morra; por outro lado, pode acontecer que, de má vontade, um homem queira o mesmo que, de boa vontade, Deus quer, como, por exemplo, se um filho mau queira que o pai morra, e isso também Deus queira. Isto é, aquele quer o que Deus não quer; este, porém, quer o que também Deus quer. E no entanto a piedade daquele, ainda que a querer coisa diferente, mais se coaduna com a vontade boa de Deus, do que a impiedade deste a despeito de querer o mesmo. Tanto importa que seja próprio ao homem querer, que o seja a Deus, e a que fim se inclina a vontade de cada um, de sorte que ou seja aprovada ou seja reprovada. Ora, mediante as vontades más de homens maus Deus executa o que quer de boa vontade." (Agostinho, Inquirição a Lourenço, cap 101, citado em idem)
Isto é, um homem deseja o mal e ainda assim o que ele deseja é o mesmo que Deus deseja, porém com Deus o desejando para o bem. Trata-se de uma questão de intenções, muito mais que de ações (pois estas são praticadas por cada agente, não sendo Deus o executor dos atos maus). Como Deus sempre quer o bem e a justiça, sua glória é mantida, e sua santidade continua imaculada.
"E assim, de maneira mirífica e inefável, não se faça, exceto por sua vontade, o que se faz mesmo contra sua vontade, porque não se faria se ele não o permitisse; nem o permite, como se de qualquer forma não o quisesse; ao contrário, porque o quer; mesmo sendo bom não permitiria que mal se fizesse, exceto que, onipotente, até em relação ao mal pudesse fazer
bem." (Agostinho, citado em 1.18.3, p.229)
Novamente, nossa oração que sejamos humildes e aceitemos de bom grado essa doutrina que a Bíblia nos ensina, e que os pais com todo cuidado expuseram para nós.
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