"O conhecimento de nós mesmos situa-se, em primeiro lugar, nisto: que, atentando para o que nos foi outorgado na criação, e quão benignamente Deus continua sua graça para conosco, saibamos quão grande seria a excelência de nossa natureza, se porventura permanecera íntegra, contudo ao mesmo tempo reflitamos que em nós nada subsiste de próprio... Em segundo lugar, que encaremos bem a miserável condição em que nos achamos após a queda de Adão, por cujo reconhecimento, posta por terra toda jactância e confiança própria, esmagados de vergonha, verdadeiramente nos humilhemos." (2.1.1, p.15)
No entanto, algo que se coloca como barreira a esse conhecimento é o orgulho humano. Calvino lembra que "nada há que a natureza humana mais cobice que ser afagada por lisonjas" (2.1.2, p.16), o que se torna um problema quando se deve contemplar a maldade e pecaminosidade dos seres humanos. Somente quando reconhecermos nossa inabilidade humildemente buscaremos essa ciência.
"Aos que confiam poder fazer algo de sua própria capacidade não pode suceder de outra maneira. Portanto, se alguém dá ouvidos a tais mestres que nos incitam a tão-somente mirarmos nossas boas qualidades, não avançará no conhecimento de si próprio; ao contrário, se precipitará na mais ruinosa ignorância." (2.1.2, p.17)
O reformador também nos dá um alerta. Deus não quer que ignoremos as características do homem antes da queda. É costume, especialmente entre os reformados, dá tanta ênfase na natureza caída do homem que muitos acabam considerando a humanidade como a pior das obras de Deus. Calvino rejeita essa distorção, lembrando que saber como era Adão originalmente nos leva a ansiar mais ainda pela presença de Deus conosco.
"Tampouco quer Deus que nos esqueçamos de nossa nobreza primeva, nobreza que conferira a nosso pai Adão, nobreza que por certo deve, com razão, despertar nosso zelo pela justiça e pela bondade. Pois não podemos sequer pensar, seja em nossa própria condição original, seja para quê fomos criados, que não sejamos acicatados a meditar na imortalidade e a anelar pelo reino de Deus." (2.1.3, p.17)
Sobre esses propósitos para conhecer-se, Calvino tem mais a dizer, algo que ele divide em dois propósitos básicos - "que o homem reconheça qual seja seu dever" e "de que recursos dispõe para desempenhá-lo" (2.1.3, p.18) . Ele explica esses conceitos dessa forma.
"Em primeiro lugar, considere para que fim foi criado e provido de dotes que não se deve desprezar, mercê de cuja reflexão se desperte à meditação do culto divino e da vida futura; em segundo lugar, pondere suas capacidades; ou, de fato, sua carência de capacidades, a qual, uma vez percebida, se prostre em extrema confusão, como que reduzido a nada." (idem)
Portanto, é importante que tenhamos em vista a proposta de Calvino para uma antropologia bíblica. Ela não deve ser mera informação, mas algo que nos leve a ansiar pelos céus e nos faça aprender em humildade. Que nossos teólogos possam também pensar assim.
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