Uma crença popularizada no meio evangélico diz respeito aos dons espirituais, isto é, capacidades especiais recebidas pelos crentes regenerados pelo Espírito Santo. Ou seja, são dádivas dadas somente pelos crentes, uma vez que estes tornaram-se espirituais. Não nego que a doutrina seja bíblica, porém existe uma certa "gnosticalização" do conceito, ao menosprezar outros dons que também são dados por Deus e que, portanto, podem ser considerados espirituais. Para Calvino, entre eles, está a razão humana."Se reputarmos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade, a própria verdade, onde quer que ela apareça, não a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus. Ora, nem se menosprezam os dons do Espírito sem desprezar- se e afrontar-se ao próprio Espírito." (2.2.15, p.43)
A seguir o reformador lista as diversas conquistas humanas, em variadas áreas como filosofia, direito, medicina, matemática, entre outras. Tudo isso é fruto do dom de Deus e não deve ser rejeitado.
"Portanto, se esses homens, a quem a Escritura chama naturais [1Co 2.14], que não tinham outra ajuda além da luz da natureza, foram tão engenhosos na inteligência das coisas deste mundo, tais exemplos devem ensinar-nos quantos são os dons e graças que o Senhor tem deixado à natureza humana, mesmo depois de ser despojada do verdadeiro e sumo bem." (idem)
Claro que há falhas na razão humana, mas como foi dito, aquilo que é verdade não pode ser ignorado. Calvino considera isto como um pecado, pois rejeita-se uma dádiva do Espírito. Ele lembra que isso não significa que o Espírito habita nos ímpios só porque eles têm dons, mas que é ele quem sustenta e vivifica tudo o que há. Negar isso é cair em grave erro.
"Pois se o Senhor nos quis assim que fôssemos ajudados pela obra e ministério dos ímpios na física, na dialética, na matemática e nas demais áreas do saber, façamos uso delas, para que não soframos o justo castigo de nossa displicência, caso negligenciemos as dádivas de Deus nelas graciosamente oferecidas." (2.2.16, p.44)
Essas maravilhosas habilidades legadas por Deus não devem se tornar motivo de orgulho. O homem continua em condição miserável mesmo com tantos avanços no saber. Peçamos a Deus essa consciência.
"Não julgue ser o homem sumamente ditoso, quando se lhe concede tão grande poder de compreender a verdade sob os elementos deste mundo, deve-se, ao mesmo tempo, apreender que não só toda esta capacidade de compreensão, como também a compreensão que daí resulta, é coisa sem consistência e sem estabilidade diante de Deus, quando não subjaz nela o sólido fundamento da verdade... após a queda, foram subtraídos ao homem os dons graciosos, assim também foram corrompidos estes dons naturais que lhe restavam." (idem)

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