"Se os gentios têm a justiça da lei da natureza gravada na mente, por certo que não diremos que são inteiramente cegos na maneira de conduzir a vida. E nada é mais generalizado que ser o homem suficientemente assistido, em relação à reta norma da vida, pela lei natural de que o Apóstolo aqui fala." (2.2.22, p.49)
No entanto, essa lei natural não dá ao homem completa norma de vida, nem o prepara para a santidade. É claro que ela é útil para que a humanidade, mesmo caída, não se autodestrua. Porém, sua finalidade maior é condenatória. O apóstolo Paulo nos explica isso em Romanos 2.1 - "Portanto, és indesculpável, ó homem, quando julgas, quem quer que sejas; porque, no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas" - e Calvino tem essas palavras em mente ao expor essa doutrina.
"Portanto, a finalidade da lei natural é tornar o homem inescusável. E poderíamos defini-la adequadamente dizendo que é um sentimento da consciência mediante o qual discerne entre o bem e o mal o suficiente para que os homens não prextestem ignorância, sendo convencidos por seu próprio testemunho. A indulgência do homem para consigo mesmo é que, ao perpetrar o mal, sempre e de bom grado aparta a mente do senso de pecado, até onde permissível." (2.2.22, p.50)
Muito útil nessa discussão é o que Calvino chama de "princípio de Temístio". Este filosófo grego dizia que os homens sempre têm um senso de pecado em relação a situações gerais. No entanto, para si, abre exceções, por considerar que o seu erro, naquele caso específico, é justificado. O reformador concorda - ainda que admita exceções, como veremos - com ele.
"Ninguém haverá que não afirme que o homicídio é mau, se a indagação é de cunho geral. Aquele, porém, que maquina a morte de um inimigo, delibera-a como se tratasse de uma boa coisa. O adúltero condenará o adultério em geral; entretanto o lisonjeará no seu em particular... homem se esquece dessa regra que havia há pouco estabelecido como princípio universal, quando chega a um caso particular." (2.2.23, p.50)
Esse princípio, porém, não é absoluto. Calvino nos lembra que existem pessoas que realmente praticam a maldade sabendo que fazem o mal. O reformador cita a distinção do erro humano, feita por Aristóteles, entre incontinência e intemperança. O primeiro caso é esse citado em Temístio - alguém que considera algo como mau, mas está cego quando pratica esse mal. Já a intemperança diz respeito aos que convictamente praticam o erro. Como diz Ovídio:
“Vejo as coisas melhores e as aprovo; porém sigo as piores.” (Medéia, in Metamorfose, de Ovídio, VII, 20, citado em idem)
Portanto, a obra missionária é necessária, pois a lei natural nunca levará homens à salvação, mas apenas à condenação. É necessário que o crente se esforce por isso, não confundindo a mera obediência a essa lei à verdadeira piedade, esta que só vem do Senhor.