Parece bobagem falar isso, mas muitos escritores iniciam suas obras, algumas polêmicas até, sem definir as palavras que utilizam. Foi o caso de certo livro, que passou por minhas mãos recentemente. O autor dedicou um capítulo inteiro explicando que deveríamos ser transparentes, que Jesus era alguém transparente, que falta transparência na igreja. Alguns versículos soltos, terminou o texto e perguntei - "sim, mas o que ele quer dizer com transparente? Eu imagino o que seja, mas não me parece que ele está usando nesse sentido". Como vou dialogar com o cara se ele não me informa bem o que é a tal "transparência" que ele tanto quer ver? Afinal de contas, Jesus também tinha seus mistérios e enigmas.
Bom, de qualquer maneira, não temos esse problema aqui, pois Calvino inicia essa nova seção com explicações sobre o que ele está falando. Um bom escritor, ao entrar no debate público, define bem seus termos e expressões.
"Entendo como conhecimento de Deus aquele em virtude do qual não apenas concebemos que Deus existe, mas ainda apreendemos o que nos importa dele conhecer, o que lhe é relevante à glória, enfim, o que é proveitoso saber a seu respeito." (1.2.1, p.44)
Me parece aqui que o reformador já deixa de fora qualquer tipo de "frívolas especulações" (1.2.2, p.45), de maneira semelhante ao que os escolásticos católicos e muitos filósofos faziam. Embora esse seja um conhecimento apropriado sobre Deus, ainda não se trata de conhecimento salvífico, mas daquele "primário e singelo" (1.2.1, p.44) que Adão teria, se não tivesse pecado. Portanto, Calvino faz uma distinção entre dois tipos de conhecimento de Deus.
"O Senhor se mostra, em primeiro lugar, tanto na estrutura do mundo, quanto no ensino geral da Escritura, simplesmente como Criador, e então na face de Cristo como Redentor." (idem)
Ainda que esse primeiro conhecimento não seja realmente um discipulado cristão, para Calvino é essencial que a pessoa que deseje conhecer o Criador mantenha uma atitude de reverência.
"Em parte alguma se achará uma gota ou de sabedoria e de luz, ou de justiça, ou de poder, ou de retidão, ou de genuína verdade, que dele não emane e de que não seja ele próprio a causa; de sorte que aprendamos realmente dele esperar e nele buscar todas as coisas; e após recebidas, a atribuir-lhas com ação de graça." (1.2.1, p.44s)
Essa reverência, que ele chama de piedade, funciona como um pressuposto básico para aquele que deseja conhecer o Senhor. De fato, não há como alguém obter um verdadeiro conhecimento de Deus se parte da assunção de que o Criador não é o parâmetro para definirmos justiça, poder, beleza, sabedoria, e tudo o que for possível daí tirar.
"Chamo piedade à reverência associada com o amor de Deus que nos faculta o conhecimento de seus benefícios. Pois, até que os homens sintam que tudo devem a Deus, que são assistidos por seu paternal cuidado, que é ele o autor de todas as coisas boas, daí nada se deve buscar fora dele, jamais se lhe sujeitarão em obediência voluntária." (1.2.1, p.45)
Assim, para Calvino, o objetivo da teologia é este - sujeitar-se obedientemente a Deus. O estudante que deseja conhecer mais o Criador, apenas por mera curiosidade, não obterá bons resultados. Alguém já notou o fato de Tomás de Aquino concentrar-se mais na pura obtenção de dados sobre a Divindade, enquanto João Calvino insiste num conhecimento que necessariamente nos leva à adoração.
"Em todas as suas páginas aparece não tanto (como em Aquino) a soma de toda teologia (summa theologiae), mas uma soma de toda piedade (summa pietatis). Teologia e ética tem uma relação simbiótica." (Derek Thomas)
Por fim, uma frase que me chama atenção, por demonstrar que a idéia por trás da "Teologia da Alegria", de John Piper, é parte da tradição reformada.
"Mais ainda: a não ser que ponham nele sua plena felicidade, verdadeiramente e de coração nunca se lhe renderão por inteiro." (1.2.1, p.45)
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