"O homem, ao sujeitar-se a esta necessidade, não é privado da vontade, mas da sanidade da vontade... Com efeito, nem se pronunciou inadequadamente Bernardo, que ensina subsistir em todos nós o querer – porém, querer o bem ser proveito; querer o mau, defeito. Isto é, simplesmente querer provém do homem: querer mal, da natureza corrompida; querer bem, da graça." (2.3.5, p.62)
Calvino mostra que tanto Deus quanto o diabo têm necessidades voltadas para certo valor, e nem por isso podemos considerá-los como marioenetes ou robôs. Não se trata de uma compulsão, mas de uma orientação. Tratam-se de trechos bastante elucidativos:
"Ora, a bondade de Deus é a tal ponto entrelaçada com sua divindade, que não lhe é mais necessário ser Deus do que ser bom. O Diabo, porém, em decorrência de sua queda, a tal ponto se alienou da comunhão do bem, que nada pode fazer senão o mal... Portanto, não se impede que a vontade de Deus seja livre em fazer o bem, só porque ele por necessidade opera o bem; se o Diabo, que outra coisa não pode fazer senão o mal, entretanto peca por vontade, quem por isso dirá que o homem peca menos voluntariamente, uma vez que está sujeito à necessidade de pecar?" (2.3.5, p.62s)
O que existe no caso do homem, para Calvino, é uma relação quase simbiótica entre vontade e necessidade. Ao mesmo tempo em que o homem é livre enquanto peca, ele tem a necessidade de pecar. A vontade do homem produz a necessidade, e a necessidade produz a vontade. Novamente trazendo Bernardo como guia, o reformador nos deixa uma desafiadora citação dele:
"Desse modo, não sei por que modo depravado e estranho, mudada pelo pecado, em verdade para pior, a própria vontade para si engendra a necessidade, de modo que nem a necessidade, uma vez que provenha da vontade, pode escusar a vontade, nem a vontade, uma vez que tenha sido seduzida, pode excluir a necessidade... E assim a alma, de certa maneira estranha e deplorável, sob esta necessidade, há um tempo, decorrente da vontade e perniciosamente livre, afirma ser não só escrava, mas também livre: escrava, em função da necessidade; livre, em função da vontade; e, o que é mais estranho e mais deplorável: é culposa, por ser livre; e é escrava, por ser culposa; e, em decorrência disso, é escrava, quando é livre." (2.3.5, p.63)
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