"Se porventura os próprios fiéis também foram ou não assim instruídos pelo Senhor para que sentissem haver para eles, em outra parte, uma vida melhor, e, relegada a um plano inferior a existência terrena, tivessem em consideração essa outra. Em primeiro lugar, a condição do viver que lhes fora divinamente imposta era um exercício contínuo em virtude do qual fossem lembrados de que eram de todos os mais miseráveis, caso fossem felizes apenas nesta vida." (2.10.10, p.193)
Essas seções são um remédio para irmãos impressionados com a teologia da prosperidade, uma vez que geralmente personagens como Noé e Jacó são usados como exemplo de vidas cheias de riqueza. É evidente que eles receberam inúmeras bênçãos, mas também passaram por grandes provações, demonstrando que só têm verdadeira herança nos céus.
Num belíssimo capítulo, Calvino mostra como a vida de Abraão trouxe diversas dores: vagar por terra estranha; prostituir a esposa, algo "mais amargo que muitas mortes" (2.10.11, p.194); separar-se de Ló, dor "como se lhe amputasse um de seus próprios membros" (idem) e outras provações, como a ordem de sacrificar o próprio filho.
"Abraão foi a tal ponto acossado e atribulado em todo o decurso da vida, que, se alguém porventura queira pintar numa tela o exemplo de uma vida calamitosa, certamente não achará nada mais apropriado. Nem objete alguém que ele não foi totalmente desafortunado, uma vez que, afinal, emergira venturosamente de tantas e tão grandes tempestades. Pois não diremos que leva uma vida ditosa aquele que moureje laboriosamente por infinitas dificuldades ao longo do tempo, mas aquele que desfrute tranqüilamente dos bens presentes, sem a sensação dos males." (2.10.11, p.195)
Da mesma maneira que Abraão, Calvino mostra as dificuldades de Adão pós-Queda, de Noé vivendo "quase atolado nos estrumes de animais" (2.10.10. p.193), Isaque e Jacó. O reformador lembra que o próprio neto de Abraão chama seus dias de maus e breves (Gn 47.9), demonstrando que a esperança dele estava na vida eterna.
"Quem declara haver atravessado a vida por entre contínuas adversidades, nega, evidentemente, haver usufruído essa prosperidade que lhe havia sido prometida pelo Senhor. Logo, ou Jacó era um mau e ingrato apreciador do favor de Deus, ou, com verdade, confessava publicamente haver sido desventurado sobre a terra. Se esta afirmação foi verdadeira, segue-se que ele não teve sua esperança fixa nas coisas terrenas." (2.10.12, p.196)
Que esse estudo nos ajude a ter uma mentalidade semelhante, retirando nossa esperança final das coisas terrenas e colocando-a no Senhor.